A demora no acesso ao tecovirimat, único remédio aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para tratamento da varíola dos macacos, pode fazer a doença evoluir de forma desenfreada e com manifestação ocular atípica. Isso ocorreu em pelo menos dez pacientes da monkeypox (ou mpox) em São Paulo, tratados por Luciana Finamor, oftalmologista especializada em infecções oculares. Em dois deles, a espera de 60 dias pelo medicamento provocou a cegueira de um dos olhos, quadro que a literatura existente até hoje não sabe determinar se é reversível.
A última remessa de tecovirimat que chegou ao Brasil trouxe os tratamentos de dois pacientes em São Paulo, atendidos na rede pública, que eram acompanhados pela reportagem. Em ambos, a varíola dos macacos evoluiu sem tratamento viral específico por dois meses e de forma grave, transmitindo as feridas da pele para as córneas e comprometendo a visão de ambos até a cegueira.
Casos de manifestação ocular da varíola dos macacos ainda são raros, mas já foram documentados. Em relatório de outubro, o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC, na sigla original em inglês) dos Estados Unidos alertou que a doença pode causar “sérias complicações” nos olhos, com cinco casos registrados no país entre agosto e setembro, todos tratados com tecovirimat.
Os sinais aparecem depois que as feridas de pele já estão parcial ou totalmente cicatrizadas, cerca de 15 a 40 dias após o início dos sintomas mais comuns, como febre, dor e fadiga. Eles começam como uma irritação no olho, que pode ficar avermelhado, lacrimejante, com forte sensibilidade à luz e sensação de areia por trás da pálpebra, podendo evoluir até a perda da visão. Apesar de poucos, esses casos nos deixam angustiados porque tentamos todas as possibilidades e não conseguimos tratar. O paciente simplesmente não melhora”, conta a médica Luciana Finamor, especializada em infecções oculares pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). “Por isso, é importante ter acesso ao antiviral, para termos melhor condição de combater a doença.”
Uma das hipóteses para esse quadro é a de autoinoculação causada pelos próprios pacientes, que transmitem o vírus ao olho por coçarem as feridas e depois levarem a mão ao rosto. Outra possibilidade é a de que, por ser um órgão imunoprivilegiado, o olho permite que o vírus fique “escondido” até causar um quadro inflamatório crônico impossível de combater apenas com os anticorpos naturais.
“Hoje, eu só vejo vultos”, relata Paulo (nome fictício), gerente de restaurantes com 37 anos atendido por Luciana e cujos danos oculares pela varíola dos macacos começaram a aparecer 27 dias depois que a doença manifestou os primeiros sinais. Os sintomas iniciais foram febre, dor e feridas na mão, boca e braço, em 7 de setembro.
Quase uma semana após ter sentido as primeiras irritações no olho, Paulo procurou um oftalmologista, onde foi indicado a usar uma combinação de colírios que não surtiu efeito. Ele foi a um segundo especialista, que desta vez iniciou um tratamento para herpes-zóister. Já era meados de outubro e 20 dias tinham se passado desde o início dos sintomas oculares quando ele finalmente conseguiu um diagnóstico correto. “Eu enxergava pouco, mas a irritação era gigantesca”, conta.
Questionado pela reportagem, o Ministério da Saúde informou que os critérios para acesso ao tecovirimat são resultado laboratorial positivo com lesão visível ou paciente internado com a forma grave da infecção. Para este segundo grupo, leva-se em conta a presença das seguintes manifestações clínicas: encefalite, pneumonite, lesões cutâneas com mais de 250 erupções pelo corpo, lesão extensa em mucosa oral e/ou lesão extensa em mucosa retal.
Segundo a pasta, até o momento foram entregues 28 tratamentos ao Brasil por doações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e da fabricante. Desses, 16 chegaram em novembro, dos quais dez foram diretamente encaminhados aos pacientes elegíveis.
Em nota, a Secretaria de Estado da Saúde (SES) de São Paulo informa que recebeu 11 pedidos para tratamento com tecovirimat durante o atual surto da varíola dos macacos. A pasta também afirma seguir o protocolo de atendimento e definição clínica estabelecidos pelo Ministério da Saúde para os casos de manifestação ocular da doença.
.
.
.
.
.
.
.
.
.
.
Fonte: A Gazeta